Findada, "A Pedra do Reino" pode ter sido apenas ovelha negra do Projeto Quadrante
Em um minuto qualquer dos cinco capítulos que A Pedra do Reino teve, a conclusão mais simples a que se pode chegar é de que há mais conteúdo visual e sonoro sendo mandado para o telespectador do que em qualquer outro programa da televisão brasileira. Luiz Fernando Carvalho, diretor da micro-série da Globo, provavelmente queria exatamente isso: encher a cabeça de quem vê o produto que ele vende com a maior quantidade possível de recursos audiovisuais. O que ele certamente conseguiu foi distrair aqueles que queriam ou não ver o programa. Dá para ficar vidrado vendo A Pedra do Reino sem entender, raciocinar ou ligar cada fragmento de um diálogo com o contexto da trama (?).
O diálogo mais são da micro-série inteira deu-se no início do último capítulo, exibido na noite do último sábado, em que Luiz Carlos Vasconcelos e seu companheiro de cena trocavam farpas do tipo “cada fala começa com a última palavra dita pelo outro lado da conversa”. A briga intelectual estava tão boa que os dois tinham muita saliva querendo sair da boca. Mas, enfim, de volta à cena, para você ver: era um diálogo natural, absolutamente compreensível, mas que ficou difícil de acompanhar por causa de intervenções de imagem. A cena deve ter durado o quê?, uns oito minutos?, e nesse tempo todo, a edição fez uns mil cortes, e o diretor de fotografia testou quinhentos e noventa e nove tipos de enquadramentos (alguns até bacanas, mas...) que ele tinha pensando anteriormente. Resultado: na cena mais banal da micro-série inteira, o que restou foi uma bagunça visual incômoda. E estamos falando da cena mais banal. Imagina o resto.
Claro, A Pedra do Reino é um produto diferente do resto da programação da televisão brasileira porque tem um cunho unicamente artístico. Mais especificamente, um cunho experimental. O que me incomoda é quando uma obra prega ser arte até cansar, e quando isso vira desculpa para possíveis problemas. Quando notou-se que o programa era um fracasso de audiência, a Globo disse que já esperava por isso, porque a micro-série era uma experiência exclusivamente artística - escuta aqui, Globo: você está falando que o público não tem interesse por arte? Talvez por estarmos tão desacostumados com programas desse tipo e cunho, continuamos meio deslumbrados, ou ainda confusos. Mas A Pedra do Reino não é o produto intocável que parece.
Ariano Suassuna é um grande autor brasileiro, não tenha dúvida, e sua obra já pariu outros produtos artísticos da televisão brasileira, sendo O Auto da Compadecida o maior deles. Eu não li A Pedra do Reino, confesso, mas na comunidade do Orkut da micro-série, um membro postou um link para download do texto integral do livro. Eu li um pedaço generoso, e certamente não é como outras coisas do autor que eu outrora visitei. Nem de longe, porém, é tão estranho como o que Luiz Fernando Carvalho fez na televisão.
Há, no visual, som, proposta e execução da micro-série inteira, diversas referências que podemos achar. Do cinema à televisão, passando pela literatura, Carvalho pegou muitos conceitos e jogou em A Pedra do Reino, criando um ambiente genuinamente artístico, sim, mas, diferentemente de como era em sua última obra televisiva, Hoje é Dia de Maria, com muito menos dele e muito mais de racionalidade de outros. É difícil conversar sobre A Pedra do Reino e não tocar no assunto “Hoje é Dia de Maria”. Visualmente e pelo estilo teatral de contar-se a história, há semelhanças. A arte de Hoje é Dia de Maria (a primeira e a segunda jornada) é excelsa, uma das melhores coisas que já vi na tevê, e, embora haja pretensão ali, ela é uma pretensão honesta, que desde o princípio mostra aonde quer chegar, o que quer ser. E consegue tudo com clareza.
A Pedra do Reino a princípio me parece uma arte deformada, com muitos conceitos. Não acho legal, em televisão, encher a tela com tantas cores, cortes, enquadramentos, sons, cenas dentro das próprias cenas, para deformar a narrativa. Luiz Fernando Carvalho é meio subversivo, parece querer chamar a atenção para o que ele pode fazer com a arte – e consegue. Acho, também, que ele anda não gostando muito do que se convencionou chamar de “narrativa”. Lavoura Arcaica e Hoje é Dia de Maria são exemplos que dão certo no sentido de incendiar o tipo narrativo comum e encher de conceitos o que sobra. A Pedra do Reino tem muitos conceitos, e um texto adaptado que não se sustenta, ou ao menos é disposto na tela de forma que não se sustenta. A sensação que ficar vendo uma hora da micro-série dá é a de ir para a Sapucaí ver o desfile de carnaval com um livro no bolso, e enquanto a Beija Flor está na avenida, a pessoa está tentando se concentrar em “uma viagem muito doida” de um Suassuna extra-regionalista.
Tem que se entender, também, que por outro lado a idéia era de criar uma experiência sensorial para o telespectador, que a narrativa ficou confusa propositadamente, para que em uma hora sentado na frente da tevê representasse ser guiado por sons e cores, e não pelo texto. O elenco, certamente esforçado e bom, estava ali para servir de pano de fundo para essa “viagem muito doida”. Coisa estranha foi ver uma caricatura do Nordeste (filmagens na Paraíba) em que os personagens mais marcantes são um palhaço narrador e um moleque engraçado que andava com as pernas tortas e com a cabeça balançando de um lado para o outro (inevitavelmente me lembrou um sapo). Não houve tempo ou sentido suficiente para compreender e ver a alma dos personagens, então são esses borrões de lembranças que ficam na cabeça. Se Lars von Trier fosse brasileiro, eu suspeito que ele faria a adaptação de A Pedra do Reino de uma forma parecidíssima – visualmente idêntica, e narrativamente mais fácil para o telespectador. Continuaria sendo arte.
Conversando esses dias com o Ale Rocha, do blog Poltrona.TV, eu disse pra ele que A Pedra do Reino poderia ser analisada melhor mais para frente, porque a micro-série plantaria dentro de cada telespectador uma semente que floresceria apenas no futuro, e o que saísse dela seria o que A Pedra do Reino representara para cada um de nós. Ale, desculpa aí: foi um relapso meu. Por um momento, achei que a obra fosse mais grandiosa do que realmente foi, que a idéia “isso não é tevê, é cinema!” fosse algo positivo. O que A Pedra do Reino representará no futuro será, espero eu, o lado negro do Projeto Quadrante, a ponta que deu errado. Restam ainda três obras da nossa literatura para Carvalho filmar, até ano que vem. Tomara que esse projeto ambicioso termine melhor do que começou. A semente de A Pedra do Reino é como, err, uma pedra: não vai dar fruto. Hoje é Dia de Maria será/foi mais importante que A Pedra do Reino em todos os sentidos.
E, por fim, resta a mim desejar que Carvalho tenha tirado uma lição disso tudo, que não esteja dizendo para si “As pessoas não entenderam a proposta artística do meu trabalho!”. Porque ele é um diretor que tem credibilidade visual, e, embora esse campo, em A Pedra do Reino, seja indiscutivelmente surpreendente, não é perfeito. Quando eu via a câmera ser deselegante, a edição ser infeliz na hora do corte, a imagem ficar embaçada/fora de foco ou a trama não querer dizer nada exageradamente, eu imediatamente desejava que a desculpa não fosse a da “proposta artística”, mas sim a infinitamente mais humilde “Bem, foi a primeira parte do projeto. Na próxima eu faço melhor”. Ele certamente consegue.
UPDATE: Muita gente tem dito que é difícil entender o que os personagens de A Pedra do Reino dizem, que os personagens não pronunciam direito. Eu tive esse problema mais com a primeira jornada de Hoje é Dia de Maria; nessa micro-série, não tive. De qualquer forma, talvez a interpretação teatral do elenco (que não me agrada muito, porque a noção de espaço em alguns momentos deixou os enquadramentos obtusos), direcionada por LFC, seria o motivo disso.
2 comentários:
Duas palavras: mid-cult (http://www.oclick.com.br/colunas/brandao29.html)
Discordo com a comparação ao Von Trier. Até porque ele nunca iria super fotografar-editar qualquer coisa que fizesse. Até mesmo no que diz respeito ao entendimento da coisa. Por mais difícil que sejam os filmes do dinamarquês, sempre ficou clara a intenção dele. Já os programas do Luiz Fernando Carvalho...
Hoje é Dia de Maria foi uma obra prima! Tudo funcionava! E nem eu e nem a minha empregada, que assistia a série comigo, tivemos dificuldade de entender alguma coisa. inclusive o que era dito. adoramos aquele jeito cantado. Já a segunda fase não foi muito boa. Mas esta Pedra do Reino foi insuportável! Deu até dor de cabeça! Muita pretensão e e pouca competência.
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